sábado, 15 de outubro de 2011

15 de Outubro



Vinha exausto. Profissionalmente, sobrevivera à semana mais agitada do ano e, entre o culminar de uma aventura e uma hecatombe, nem sequer tinha tido tempo para pensar. Mesmo respirar tinha sido coisa rara, na semana em que também  o coração partiu.

Ouvia gritos, via-os indignados. Alguns divertidos, outros nem tanto. Alguns carregados de cartazes, outros mais entretidos com malabarismos. Cerveja, tambores, bolinhas de circo ou simplesmente penteados. Não faltou entretenimento ao 15 de Outubro.

Crise e sol, ambos demasiado duros para esta época. Gente no limite, gente sem oportunidades, gente sem mais paciência. Entre os milhares na rua - fossem os dez mil da polícia ou os cem mil da organização - só existia um ponto em comum. A paciência tinha esgotado. Não havia como disfarçar. Fosse porque os iMacs estão cada vez mais caros, pelo choque de saber que em 2011 ainda se morre à fome ou pela afronta que quem manda volta a fazer, entre os Indignados não havia quem não estivesse a pensar "Basta".

Encontraram-se velhos amigos, trocaram-se sorrisos, abraços e histórias de guerras: antes do 25 de Abril é que era ... ; e o gajo que mostrou o cú à Manuela Ferreira Leite?; a da Ponte é que foi ... ; e os Secos e Molhados? Entre as memórias, um denominador quase comum: o nosso Presidente da República. Fosse por ter nomeado a Manuela para ministra da Educação, fosse por ter inventado a PGA, por ter dado a ordem da carga na ponte ou por ter equipado os polícias de serviço com mangueiras, o velho Aníbal está em todas. Em quase todas. Antes do 25 de Abril era só "alinhado", não participava.

"Sejam realistas, peçam o impossível". "Vão à bardaMerkel". "Catastroika". "Tira-me o Natal, dou-te greve geral". "Vão privatizar a puta que vos pariu". "Quem deve dinheiro é banqueiro". Eram mesmo "muitos e não tinham medo". Um mimo para o Aníbal: "Cavaco, a brincar aos sérios desde 1985".

Um coração partido pesa mais. O corpo fica menos disponível. A face menos elástica. E as conversas deixam de fluir. Tudo fica mais vagaroso. O Indignado, optou pelo papel de observador. Afinal a luta até era internacional, estavam cidades ocupadas em mais de sessenta países e nas ruas a quantidade de polícia não enganava. A principal batalha até já estava ganha.

No reino dos iPad, iPod, iPhone das sociabilidades cibernéticas e dos indies, ainda há quem saia para a rua com uma atitude punk rock. Sem partidos, sem planos retorcidos, mas com a ingenuidade de achar que ainda se muda o Mundo. Saíram indignados, saíram pelo 15 de Outubro como tinham saído a 12 de Março e o Indignado voltava a acompanhar. O Indignado perguntava: será que serão capazes?

De coração partido mas olhos bem abertos, viu agressões, murros e gritaria. Contra o marchar do Corpo de Intervenção ajudou a segurar os últimos ocupantes da escadaria e teve de se conter para não soltar um ou dois impropérios. Mas da mesma forma que se surpreendeu pela elevada percentagem de polícias civilizados e competentes, não deixou de pensar que os outros, os que se sentem enormes na protecção de uma armadura e com um bastão nas mãos, nem os gritos mereciam.

Voltou melhor para casa. Esgotado, de coração partido, mas com uma confiança redobrada. Se ainda há quem se acredite capaz de mudar o Mundo, quem por isso arrisque a integridade física e quem corra sem segundas intenções. Se ainda sobrevivem os loucos capazes de gritar frases quem gritam "os democratas são os novos fascistas" ou de protestar com frases clássicas do cinema escritas a marcador preto em cartão - "Everybody be cool this is a robbery" - porque raio não conseguiria ele, um simples indignado, resolver problemas bem mais simples. Da mesma forma que os Indignados conquistaram a escadaria e ficaram a sonhar com a invasão aos corredores de São Bento, também ele seria capaz de continuar a caminhar.

Na noite em que a sua geracção descobriu que as barreiras policiais são quebráveis, exausto e de coração partido, pensou no que perderia, mas também nas cenas tristes a que se pouparia, pensou no sorriso e no olhar que nunca mais veria, mas chegava a casa convencido que merecia mais, que a vida, ou mesmo o Mundo, podia ser melhor. Tinha visto como às vezes um sprint em direcção ao Corpo de Intervenção pode ser bem sucedido, mas também que há alturas em que o melhor é ceder e abandonar a Escadaria. A luta, pela vida e por um Mundo mais limpo, continua pela estrada fora. A frase estava num dos cartazes: "Sejam realistas, exijam o impossível".

Enjoy